segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Abuso quântico e pseudociência, artigo de Marcelo Knobe


Marcelo Knobel, físico, é professor do Instituto de Física Gleb Wataghin e pró-reitor de graduação da Unicamp. Artigo publicado na Folha de São Paulo de domingo (2).
Em entrevista recente à Folha, o recém-aposentado ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, afirmou que sua visãoespiritualista de mundo seria confirmada pela física quântica, citando diversos autores, entre os quais Einstein ("A vida começa aos 70", em 18 de novembro).

Cito dois trechos:

1) "Depois, de uns 12 anos para cá, comecei a me interessar por física quântica, e ela me pareceu uma confirmação de tudo o que os espiritualistas afirmam. A física quântica, sobretudo os escritos de Dannah Zohar [especializada em aconselhamento espiritual e profissional]."

2) "Einstein, físico quântico que era, cunhou uma expressão célebre: 'efeito do observador'. Ele percebeu que o observador desencadeava reações no objeto observado. (...) Claro que quando você joga teoria quântica para a teoria jurídica, se expõe a uma crítica mordaz. O sujeito diz: "Mas isso não é ciência jurídica'."

Na verdade, a fascinante física quântica aplica-se somente a sistemas físicos na escala atômica, jamais a questões profissionais ou jurídicas. As analogias podem ser exercícios criativos ou poéticos até interessantes, mas não passam disso.

Ao buscar a palavra "quantum" em qualquer livraria virtual, é assombroso notar que a maioria das obras listadas refere-se a supostas explicações quânticas dos mais diversos aspectos da vida - da memória à cura de enfermidades, passando pelo sucesso no amor e na carreira.

Como físico, acredito em coisas incríveis, como entes que são ondas e partículas simultaneamente, universos multidimensionais, tempos e comprimentos que dependem da velocidade do objeto, estruturas nanoscópicas que podem atravessar verdadeiras paredes e muitos outros fenômenos que certamente não são nada intuitivos e continuam sendo impressionantes, mesmo após anos e anos de estudo.

Mas em ciência o importante é que as teorias sejam comprovadas seguindo critérios rígidos, metodologias adequadas e publicadas em periódicos de circulação internacional, para que outros pesquisadores possam tentar repetir os experimentos e modelos, verificando possíveis falhas e buscando explicações alternativas, com certo ceticismo. Não é o caso das ideias citadas pelo ministro.

Ocorre que, diariamente, somos inundados por inúmeras promessas de curas milagrosas, métodos de leitura ultrarrápidos, dietasinfalíveis, riqueza sem esforço. A grande maioria desses milagres cotidianos são vestidos com alguma roupagem científica: linguagem um pouco mais rebuscada, aparente comprovação experimental, depoimentos de pesquisadores "renomados", alardeado acolhimento em grandes universidades. São casos típicos do que se costuma definir como pseudociência.

A maioria das pessoas vive perfeitamente bem sem saber diferenciar ciência de pseudociência. Mais cedo ou mais tarde, porém, em alguns momentos da vida esse conhecimento pode ser muito importante. Seja para decidir um tratamento médico, seja para analisar criticamente algum boato, seja para se posicionar frente a alguma decisão importante que certamente influenciará a vida de seus filhos e netos.

A sociedade como um todo deve assimilar a cultura científica. É importante a participação de instituições, grupos de interesse e processos coletivos estruturados em torno de sistemas de comunicação e difusão social da ciência, participação dos cidadãos e mecanismos de avaliação social da ciência.

Em uma sociedade onde a ciência e a tecnologia são agentes de mudanças econômicas e sociais, o analfabetismo científico, seja de quem for, pode ser um fator crucial para determinar decisões que afetarão nosso bem-estar social.

É impossível tomar uma decisão consciente se não se tem um mínimo de entendimento sobre ciência e tecnologia, como funcionam e como podem afetar nossas vidas.

Réplica publicada no Painel do Leitor na Folha de São Paulo de hoje (3)

Físico me atribuiu afirmação que não fiz, declara Ayres Britto
Carlos Ayres Britto, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal de Brasília (DF)

Logo na primeira frase do artigo "Abuso quântico e pseudociência" (Tendências/Debates), o físico Marcelo Knobel me atribui afirmação que não fiz: de que minha visão espiritualista de mundo seria confirmada pela física quântica. O certo seria dizer o que se contém, sem tirar nem pôr, na entrevista que dei e a que ele se refere: "Depois, de uns 12 anos para cá, comecei a me interessar por física quântica, e ela me pareceu uma confirmação de tudo o que os espiritualistas afirmam". Eles, os espiritualistas, e não eu, dr. Knobel.

No mais, o ilustre doutor passa a extrair conclusões meramente cerebrinas das minhas respostas e, por isso mesmo, não mais que especulativas ou conjecturais. Pra não dizer fantasiosas, pois não têm nada a ver com as investigações que tenho feito sobre o aproveitamento de certos juízos quânticos como juízos de ciência jurídica. Dentre eles, os princípios "da incerteza", "da complementaridade" e do "efeito do observador", além da compreensão dos fenômenos quânticos como ondas de possibilidades.

* A equipe do Jornal da Ciência esclarece que o conteúdo e opiniões expressas nos artigos assinados são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do jornal.

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